A Velha Fazenda

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Já era quase noite quando o eco dos freios da pick-up ressoou no vazio daquela noite chuvosa, soltando barro para todo lado. Bem que eu devia ter ouvido aqueles comentários na cidade que me diziam para ficar longe daqui quando perguntei onde ficava a velha fazenda do Sr McWire.

Não que também não fosse estranho um aquele telefonema do Tribunal falando que meu velho tio tinha me deixado como herança sua fazenda no interior daquela pequena cidade. Mesmo sendo um dos parentes que mais me amava, pensei que talvez uma herança dessas devesse ficar para os irmãos dele, ou algo assim. Apenas peguei algumas roupas, passei no mercado e comprei um pouco de comida, o suficiente para o fim de semana, onde eu iria conhecer o meu mais novo bem adquirido. Saí da pick-up esbravejando contra os céus por mandarem aquela chuva exatamente no meio do caminho entre a minha casa e a fazenda, com uma toalha para proteger a cabeça que é algo que todos fazem mesmo sem saber a razão, mesmo já estando completamente ensopado, corri até a porteira de madeira, desloquei o aro de metal que prendia o portão no resto da cerca para tentar prosseguir até finalmente chegar na casa da fazenda em si.

Ao chegar, peguei o molho de chaves e parei na frente daquela grande porta cinza, com detalhes em relevo que, olhando bem de perto, percebiam-se algumas figuras que com certeza durante o dia eu teria tempo para reconhecer. Joguei minhas coisas no chão como sempre faço em casa e corri para o segundo andar, onde deveriam estar os quartos. Acho que poucas vezes queria tanto um banho como nesse momento. Entrei no quarto e tentei acender a luz... - Que maravilha... Tudo que eu mais precisava hoje era que não houvesse luz por aqui! - Enfim, no estado que eu me encontrava nem dei muita atenção para isso. Peguei um pequeno chaveiro de LED que gerava alguma iluminação e logo pude perceber o que tinha dentro do quarto: um guarda-roupa surrado, uma cama velha e uma porta... - espero que seja o banheiro -pensei. Aproximei-me devagar até o banheiro, procurando algum chuveiro. - Finalmente! -. Cheguei embaixo do chuveiro, girei a manivela e comecei a grunhir, no tempo em que uma gosma escura saia do chuveiro e tocava minha pele. Peguei a camiseta encharcada que estava no chão e tentei me limpar um pouco daquele negócio esquisito. Ainda com uma cara feia de nojo, decidi tentar o chuveiro de outro quarto. Parei por alguns instantes quando pensei ter ouvido um sussurro ao pé do ouvido. Como a chuva lá fora estava aumentando, tive quase certeza de que era apenas impressão. Entrei no quarto e todas as luzes repentinamente se acenderam ao mesmo tempo em que a porta fechou com um baque ensurdecedor. Passada a cegueira momentânea, abri os olhos e apenas tive um estalo de me jogar no chão no instante em que aquela cadeira que voava em minha direção agora era estraçalhada na parede atrás de mim. Levantei e puxei a porta com toda a força quase a tirando do lugar pra sair correndo daquele quarto. No momento em que pisei fora dali as luzes estranhamente se apagaram. Olhei pra trás e imaginei estar sonhando. Esfreguei os olhos e prossegui para o próximo quarto, acreditando que isso não passava de alucinação, afinal estava viajando já há algumas horas e talvez fosse efeito do cansaço. Quando eu estava pra entrar no outro quarto senti uma mão nas costas me empurrando e enquanto trançava as pernas senti bater a canela em algo, e cai seco naquele chão de madeira velho e já úmido. Olhei para a porta, esperando que ela se fechasse, como na alucinação anterior, porém isso não aconteceu. Levantei e olhei em volta. O quarto estava vazio, a não ser por uma pequena luz que era possível enxergar através da janela lateral. Cheguei mais perto, pois não conseguia ter certeza se era um reflexo ou era algo de fora da casa. Nesse momento eu já nem pensava no que poderia estar acontecendo. Cheguei bem perto daquela luz e soltei um leve ar quente no vidro sujo, pra ver o que gerava aquela luz, quando no mesmo instante escutei um berro grave e alto vindo de algum lugar na minha frente. Ao olhar para o vidro vejo meu nome escrito onde em instantes eu estava parado soltando ar. Levantei ainda tremendo, e saí de costas do quarto, tateando a porta, não tirando o olhar da janela onde aquelas letras foram desenhadas.

Já fora do quarto, olhei pra frente e vi algo esbranquiçado vindo em minha direção. Virei de costas e comecei a correr para as escadas, passando pela porta de alguns quartos. Quando já estava quase alcançando os degraus, um soco forte acertou minha costela, me fazendo cair de lado, escorregando até uma outra porta que eu não tinha reparado que existia, pouco antes da minha cabeça bater fortemente em uma pilastra.

Abro os olhos lentamente. As lembranças dos acontecimentos começam a sumir lentamente da minha memória. - Por quanto tempo passei acordado?! - Penso que pelo tempo lá fora, ainda escuro e chuvoso não deve ter sido muito.

Tento me recobrar do susto, e, com os olhos ainda lacrimejando me levanto, ao mesmo tempo em que as velas nos candelabros dessa sala começam a se acender lentamente. Uma a uma, cerca de 10cm de diferença entre uma e outra vão criando chamas, dos dois lados do local, parecendo quererem se encontrar na parede principal. Quando as duas últimas velas se acendem, fecho e esfrego meus olhos, e abrindo-os novamente consigo perceber um grande quadro ocupando quase metade da parede, algo que mesmo com as velas do resto da sala acesas, eu não consegui ver antes. Nesse momento não entendo porque eu não saio correndo desse lugar pra sempre. Porém acho que a curiosidade e o medo me prendem como cola nesse chão seboso. O quadro, por mais assustador que pareça, é uma pintura do meu tio, em uma paisagem fantasmagórica, com algumas cruzes, e uma tumba, parecendo um cemitério. Achei estranho reconhecê-lo, sendo que a pintura escura não delineia mais do que alguns traços disformes. Mas mesmo assim eu SEI que é ele... A névoa da pintura parece formar um rosto, que ironicamente sorri pra mim. Olho mais abaixo, e os pés do meu tio não tocam o chão. Aliás, não parecem terem sido desenhados. Viro de costas por um momento, como se recobrasse a minha consciência, mas meu corpo não parece querer se mover do lugar. Apenas consigo perceber uma mesa no canto, com uma toalha branca esvoaçante, e duas taças. Estranho pra uma mesa tão grande uma quantidade tão pequena de taças. Mesmo isso não me importando, é algo que chama a atenção. Viro novamente pra pintura, bem em tempo de perceber uma outra cruz se formar no grande quadro. Apavorado, caio no chão, com as mãos espalmadas. Viro para a mesa, e agora consigo perceber três taças em cima dela... Penso agora novamente nos retalhos de momentos que não sairam da minha mente. Penso que eu REALMENTE devia ter escutado os boatos e ficado longe daquele local. As boas lembranças que tive dos dias de sol vão sumindo do meu pensamento, ao mesmo tempo em que escuto um órgão tocando uma música que mais parece trilha sonora de um funeral ao mesmo tempo que escuto aquela voz grave sussurrando no meu ouvido. Apenas tenho tempo de escutar, antes de fechar os olhos pela última vez: - Passarás a eternidade comigo aqui, querido sobrinho... -

Chocados naquela tarde, ao receberem a notícia da morte do seu filho alguns dias após o seu desaparecimento, os irmãos do velho McWire chorando, recebem uma ligação. Era o Tribunal, anunciando que foi encontrado um documento na casa onde ele falecera. E como parecia ter sido escrito pela letra dele, teria um valor legal de Testamento. Nele dizia que se algo acontecesse a ele, que a fazenda ficasse com seus pais, que ele amava tanto...

Eles olharam no identificador de chamadas um número estranho ligando, que parecia não ser da cidade.
Ligaram de volta para o número, e após cinco toques, um ruido alto, uma interferência, e uma voz suave ao fundo dizendo 'eu amo vocês'...

Ainda abalados com a perda do filho, decidem ignorar e viajar rumo ao mais novo bem adquirido, afinal, esse era o desejo de seu filho....

1 Comentário:

Andres Carreiro Fumega disse...

Olá, Álisson!
Este conto está simplesmente excelente! A Velha Fazenda nos prende de uma forma que não conseguimos parar de ler até o final. Parabéns e eu sou seu fã, hehehe!
Abração!
Andrés.